segunda-feira, 31 de agosto de 2015




Uma noite, 
 quando o mundo já era muito triste, 
 veio um pássaro da chuva e entrou no teu peito, 
 e aí, como um queixume, 
 ouviu-se essa voz de dor que já era a tua voz, 
 como um metal fino, 
 uma lâmina no coração dos pássaros. 
 Agora, 
 nem o vento move as cortinas desta casa. 
 O silêncio é como uma pedra imensa, 
 encostada à garganta. 






 José Agostinho Baptista

domingo, 30 de agosto de 2015




Porque eu meu filho, eu só tenho fome.
 E esse modo instável de pegar no escuro uma maçã - sem que ela caia. 






 Clarice Lispector
 (Foto de Natalia Drepina)

quinta-feira, 27 de agosto de 2015




Ainda atacas
 como pode atacar um amor já ido
 lá de vez em quando ainda atacas
 irrompes num súbito alarme
 sacodes-me de alto a baixo 
impiedosa 
mente
 sacodes
 me
 e devagar te afastas
 como um sol a por
 se 






 Rui Caeiro

quarta-feira, 26 de agosto de 2015




Tenho fotografias que provam
 que nunca exististe






 Pedro Mexia
 (Foto de René Groebli)

terça-feira, 25 de agosto de 2015




Quando alguém parte, tem de deitar
 ao mar o chapéu com as conchas
 apanhadas ao longo do Verão,
 e ir-se com o cabelo ao vento, 
tem de lançar ao mar
 a mesa que pôs para o seu amor, 
tem de deitar ao mar
 o resto de vinho que ficou no copo, 
tem de dar o seu pão aos peixes 
e misturar no mar uma gota de sangue, 
tem de espetar bem a faca nas ondas
 e afundar o sapato,
 coração, âncora e cruz, 
e ir-se com o cabelo ao vento!
 Depois, regressará, Quando? 
Não perguntes.






 Ingeborg Bachmann
 (Foto de Marian Sitchinava)

segunda-feira, 24 de agosto de 2015




não despertes o que podes calar






 José Tolentino Mendonça
 (Foto de Ralph Gibson)

sexta-feira, 21 de agosto de 2015




estar ao abrigo do fim do amor,
 é a isso que eu chamo felicidade 






 Marguerite Duras

quinta-feira, 20 de agosto de 2015




Claro as tuas mentiras 
são mais divertidas: 
porque as fazes novas de cada vez 

As tuas verdades, dolorosas e chatas
 repetem-se continuamente
 se calhar porque és dono
 de tão poucas 






 Margaret Atwood
 (Foto de Ralph Gibson)

quarta-feira, 19 de agosto de 2015




Desligada 
O vento morde meus cabelos sem medo: 
Tenho todas as idades. 






 Olga Savary
 (Foto de Laura Makabresku)

terça-feira, 18 de agosto de 2015




diz.me assim devagar
 coisa nenhuma 






 Jorge de Sena
 (Foto de Katia Chausheva)

segunda-feira, 17 de agosto de 2015




Resvalas neste sopro. 
Sabes
 que tens o olhar ferido 
desde sempre, que o incêndio 
das palavras em trânsito celebra
 prescritas sílabas, ancorados
 ritos, desprevenidos
 equinócios. 
Dantes,
 havia um mar crispado 
na fissura dos lábios. Hoje, apenas
  algumas gotas de sal.






 Albano Martins

quarta-feira, 12 de agosto de 2015




esta noite hão-de chover estrelas







 (Foto de Mariam Sitchinava)

terça-feira, 11 de agosto de 2015




Penso em ti. Mas já não o digo. 






 Marguerite Duras
 (Foto de Mariam Sitchinava)

segunda-feira, 10 de agosto de 2015




Fui a bruxas, médiuns e feiticeiros; rezei ateia e descrente em igrejas e outros templos; avé marias e pais nossos, rogai por nós pecadores; acendi velas, espalhei incensos, soletrei mantras, tomei comprimidos, fui a médicos e a curandeiros; mudei de vida, de cidade, de país, de cor de cabelo e de canções favoritas. ( ) Desfiz-me do carro, do apartamento, das roupas onde um dia te roçaste de amor ( ) Esfreguei-te da pele até quase sangrar, desisti de saber as respostas que não me deixaste; arranjei outros, outras, gente perdida como eu, ouvintes forçados da tragédia que tentei em vão banalizar de tanto e tanto a contar, passa a palavra, passa a outro e não ao mesmo, espalha por aí, espalha brasas, espalhafato. Carrego esta culpa como um nado morto ao colo; não tenho onde a largar, despejar ou enterrar, não consigo separar-me dela, e o tempo - Ah, o tempo! - que não desfaz em pó este cordão umbilical. Estás comigo a toda a hora. Amoral, assexuado; nem feio nem bonito, nem bom e afável nem ávido e cruel; não te desejo nem me arrepias: estás, apenas. Segues-me para onde vou; não és sombra nem espectro, impressão ou sopro breve, mas carne viva num sorriso corpóreo, aflito. Não te julgo, não me faltas, não te afasto nem te agarro; serias uma excrescência suportável, não fora definires aquilo em que me tornei por dentro. És um átomo de dor, imortal e imbatível, és o toque subtil do tormento, o embalo desajeitado do choro, a saturação dos fins de dia, o sono inquieto das noites. És. Mas vou a bruxas e curandeiros, acendo velas e papo missas, mudo de vida e de homens, de roupas e de horizonte, para que um dia sejas Foste






 Sofia Vieira

sábado, 8 de agosto de 2015




Por uma vez a velocidade foi um lugar firme
 entre as paredes. Tirei dela uma mão-cheia, 
duas, três. Não sei o que disseste_ o teu corpo 
era uma espécie de obstáculo à precisão, 
o erro reincidente na rotação de um compasso 

As árvores tinham pressa de chegar a qualquer lado, 
mas tu eras de uma seda mais veloz
 e corrias nos meus dedos sem remorso nem pecado 






 Rui Pires Cabral

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

quarta-feira, 5 de agosto de 2015




Obedeço obedeço mesmo na transgressão eu obedeço.






 Ana Hatherly
(Foto de Mariam Sitchinava)

terça-feira, 4 de agosto de 2015




A lenta máquina do desamor, 
os mecanismos do refluxo, 
os corpos que deixam as almofadas, 
os lençóis, os beijos, 
e de pé frente ao espelho interrogando-se 
cada um a si mesmo, 
já não olhando-se entre eles,
já não despidos um para o outro, 
já não te amo, 
meu amor.






 Júlio Cortázar
(Foto de Sonia Silva)

sábado, 1 de agosto de 2015




Era uma bela tarde. Era Agosto. 
Ah! Este mês terrível que se sabe ser o mais quente, o coração do ano
 - esse cume - este calvário de beleza
- este caminho da cruz do mês de Agosto 






 Marguerite Duras