quinta-feira, 30 de abril de 2015




quem deixou sobre o coração
 um feixe de luz
 não cega nunca 





 Valter Hugo Mãe

quarta-feira, 29 de abril de 2015




Dançava; às vezes, por dentro de si mesma 





 Baptista Bastos
 (Pina Bausch na foto)

segunda-feira, 27 de abril de 2015




não desenroles tanto a noite 
em tua pele. não equipares ao corpo 
o tropel das palavras
 na toalha. não encalhes em mim 
tanta beleza. aperta
 a blusa. recolhe do meu rosto
 os teus olhares, alguma lágrima
 brilhando sobre a mesa. 
 sossega. é cedo ainda
 para o deserto trepidante 
do desejo. não julgues saber já
 que desenlaces
 o meu corpo procura
 sobre o teu. nem eu te ofereço
 o armadilhado morango 
do amor. apenas peço 
que adormeças, 
que dês lugar na cama
 ao meu fantasma. 
 coloca o coração 
numa órbita prudente. talvez não tarde
 o tempo, 
o lugar onde eu te diga 
as palavras que desligam
 os alarmes que instalei
 em toda a alma. 





 Luís Miguel Queirós

sábado, 25 de abril de 2015




Foram dias foram anos a esperar por um só dia. 
Alegrias. Desenganos. Foi o tempo que doía 
Com seus riscos e seus danos. Foi a noite e foi o dia 
Na esperança de um só dia. 





 Manuel Alegre

sexta-feira, 24 de abril de 2015




Sem abandono
 seríamos chama fora do fogo 
 água fora do mar 





 José Tolentino Mendonça

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Livros




Perguntou-me o que é que eu escrevia nos livros. 
Respondi-lhe que me escrevia a mim. Escrevo-me. 
Transformo-me todo em palavras.





José Luís Peixoto







quarta-feira, 22 de abril de 2015






Se vens a uma terra estranha
 curva-te 
 se este lugar é esquisito
 curva-te
 se o dia é todo estranheza
 submete-te
 — és infinitamente mais estranho.





 Orides Fontela
 (Foto de Natalia Drepina)

Mediterrâneo




esse mar onde uns fazem cruzeiros e outros se fazem á morte





terça-feira, 21 de abril de 2015




Construíste a tua casa
 emplumaste os teus pássaros
 golpeaste o vento 
com os teus próprios ossos 

 terminaste sozinha
 aquilo que ninguém começou. 





 Alejandra Pizarnik

segunda-feira, 20 de abril de 2015





é um lugar ao sul







Iludir os alarmes, 
 as câmaras de segurança, 
 a paranóia infravermelha. 
 Entrar com os pés descalços, 
 avançando rente ao solo, 
 o coração no sítio certo. 
 Não ter pressa, fugir só
 no último segundo, nunca 
 pela saída da emergência.





 José Mário Silva

domingo, 19 de abril de 2015




Cortei-me e não há
 verso capaz 
de estancar o sangue





 Manuel A. Domingos
 (foto Laura Makabresku)

sábado, 18 de abril de 2015




foi um dia, e outro dia, e outro ainda. 
só isso: o céu azul, a sombra lisa, 
o livro aberto. 
e algumas palavras. poucas, 
ditas como por acaso.

eram contudo palavras de amor. 
não propriamente ditas,
 antes adivinhadas. ou só pressentidas. 
como folhas verdes de passagem. 
um verde, digamos, brilhante, 
de laranjeiras. 
foi como se de repente chovesse:
 as folhas, quero dizer, as palavras
 brilharam. não que fossem ditas, 
mas eram de amor, embora só adivinhadas. 
por isso brilhavam. como folhas
 molhadas. 





Eugénio de Andrade

sexta-feira, 17 de abril de 2015




O amor é uma noite a que se chega só 





José Tolentino Mendonça
 (Foto Natalia Drepina)



entretanto a paisagem, 
com tantos nomes, é quase a mesma. 
a mesma dor calada, 
o mesmo soluço seco,
 mesma morte de coisa
 que não apodrece mas seca 





 João Cabral de Melo Neto
(Foto de Nishe)

quinta-feira, 16 de abril de 2015




Saber de cor o silêncio 
 - e profaná-lo, 
dissolvê-lo em palavras. 





 Orides Fontela

quarta-feira, 15 de abril de 2015




Ela sou eu também. Mesmo sem querer, 
mesmo não querendo uma nem outra, 
somos uma só e a mesma. Mas ela trai-me 
quando escreve por mim, quando não se conforma, 
quando quer tudo. 
Ela, a das lágrimas de raiva,
 a que nunca te beija com meus lábios. 





 Amalia Bautista
 (Trad. A.M.)

terça-feira, 14 de abril de 2015




Está frio: Ponho Rilke no meu colo para o poder ouvir.





 Maria Gabriela Llansol
(Foto de Natalia Drepina)

sábado, 11 de abril de 2015




Há mil portas atrás 
 quando eu era uma miúda solitária 
numa casa grande com quatro
 garagens e era verão
 desde sempre, 
da noite deitada na relva, 
com os trevos a enrugarem-se por cima de mim 
as estrelas sábias deitadas sobre mim,
 a janela da minha mãe um funil 
de calor amarelo a escorrer 
a janela do meu pai, meia fechada,
 um olho onde adormecidos passavam, 
e as tábuas da casa 
eram macias e brancas como a cera 
e provavelmente um milhão de folhas
 velejavam nos seus caules estranhos 
enquanto os grilos faziam tiquetaque em uníssono
 e eu, no meu corpo recém estreado, 
que ainda não era o de uma mulher, 
dizia às estrelas as minhas perguntas
 e pensava que Deus poderia mesmo ver 
o calor e a luz pintada, 
cotovelos, joelhos, sonhos, boa noite





 Anne Sexton

lorca




Um gato é um poema.





Jean Burden
 (Foto do meu gato)

sexta-feira, 10 de abril de 2015




foi triste 
 quando partiste 
 levaste a estrada 





Líria Porto

quinta-feira, 9 de abril de 2015




Partir 
en cuerpo y alma 
partir





 Alejandra Pizarnik
 (Foto de Paulo Nozolino)

quarta-feira, 8 de abril de 2015




Tudo o que da luz 
desce e antigo finda 
na saliva da voz, 
guerras do orvalho 
na manhã dos meses, 
águas pelo musgo, 
janelas com sol,
 tudo nos falseia,
 nos lança do centro
 onde o corpo dorme. 

Já sem o repouso, 
o esquecimento, 
os olhos fechados para te não ver. 





 Joaquim Manuel Magalhães
 (Foto de Laura Makabresku)

terça-feira, 7 de abril de 2015





quando não fores capaz de falar, toca-me




Maria Sousa



Difícil é regressar: sobretudo quando a memória se perde entre quedas e solavancos, sobretudo quando estamos próximos
 da pele das mãos e não temos outra pele das mãos, sobretudo quando se tornou impossível atravessar de novo a fronteira do olhar, 
sobretudo quando um velho cão não ladra mais aos pássaros que rodopiam perto da casa, sobretudo quando as ironias não prestam
 e quando nada há a temer entre tudo o que mete medo. 





 João Ricardo Lopes
 (Foto de Natalia Drepina)

segunda-feira, 6 de abril de 2015











Como todos os seres comuns, fiz as minhas feridas. 
 Umas cicatrizaram. Outras não: 
 vão continuar abertas até que deixe de fazer sentido falar-se nelas 






Carlos Alberto Machado

sexta-feira, 3 de abril de 2015




De ti e desta nuvem; desta nuvem
 branca como voo de pássaro
 em manhã de abril; de ti
 e da íntima chama de um fogo 
que não consente extinção; 
de ti e de mim fazer um só acorde,
 um acorde só; para não te perder.






 Eugénio de Andrade
 (Natalia Drepina)

quinta-feira, 2 de abril de 2015




Cinema fechado, melancólico 
o arrumador, portões
 a cadeado, ruído abafado de matinés, 
fria a rua, de lado a lado, a cena 
em cinemascope restaurado 
mas a memória no negrume horizontal, 
premeditado, das barras. 





Pedro Mexia