domingo, 31 de março de 2013

Deixa-me rir


... Ou então deixa-me entrar em ti
Ser o teu mestre só por um instante
Iluminar o teu refúgio
Aquecer-te essas mãos
Rasgar-te a máscara sufocante...



Jorge Palma

sábado, 30 de março de 2013

A pele é a alma


Todos os dias meto a cabeça
na boca do crocodilo
O meu feito é feito de paciência
Já meti a cabeça no forno
estava farta dos crocodilos e dos amantes
Não tenho tido amantes
tenho tido crocodilos
Com os crocodilos ganho o pão e as rosas
Morrer é um truque como tudo o mais
Dobrada entre os crocodilos dobrados arrisco a pele


Adília Lopes

( Pina Bausch fotografada por Helmut-Newton)

sexta-feira, 29 de março de 2013

O Cúmplice


Crucificam-me e eu tenho de ser a cruz e os pregos.
  Estendem-me a taça e eu tenho de ser a cicuta.
Enganam-me e eu tenho de ser a mentira.
Incendeiam-me e eu tenho de ser o inferno.
  Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo.
  O meu alimento é todas as coisas.
O peso exacto do universo, a humilhação, o júbilo.
  Tenho de justificar o que me fere.
Não importa a minha felicidade ou infelicidade.
Sou o poeta.



Jorge Luis Borges

quinta-feira, 28 de março de 2013

Dias assim


Adivinhamos inquietos os olhos
e o poema dos dois corpos.
A nossa vida tem sido um passar
  sem pedir licença.
  Um dia e outro dia depois,
como quem adestra relâmpagos



Eduardo Pitta

( Foto de   Robert-and-Shana-ParkeHarrison ) 

domingo, 24 de março de 2013

Em vão


Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só meus dedos murcharam, decepados.
Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só meus olhos
se desfizeram, redondas cinzas.
Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?





Mia Couto

quinta-feira, 21 de março de 2013

Poesia é voar fora da asa



Manoel de Barros
 

E foi naquela idade…
  A poesia chegou em busca de mim.
Não sei, não sei de onde veio,
Do Inverno ou de um rio.
Não sei como ou quando,
Não, não eram vozes,
Não eram palavras, nem silêncio,
Mas chamaram-me de uma rua,
Dos ramos da noite abruptamente,
Por entre fogos violentos
Ou regressando só,
Ali estava eu sem rosto
 
E ela tocou-me.
 
 
Pablo Neruda

quarta-feira, 20 de março de 2013

Palavras surdas


despi devagar o calor de dizer o teu nome no silêncio do quarto
o aconchego de se ainda voltasses abre-se em palavras surdas
depois de improviso percorro a solidão ao espelho
como se, ao olhar muito te visse preso na pele dos dedos
inacabado e à deriva nos meus olhos



Maria Sousa

sexta-feira, 15 de março de 2013

Ouço-me por dentro

 
 
 

Alguém escreve sobre os espelhos da sombra


A noite chega com todos os seus rebanhos
  Uma cidade amadurece nas vertentes do crepúsculo
Há um íman que nos atrai para o interior da montanha.
  Os navios deslizam nos estuários do vento.
Alguma coisa ascende de uma região negra.
Alguém escreve sobre os espelhos da sombra.
A passageira da noite vacila como um ser silencioso.
  O último pássaro calou-se. As estrelas acenderam-se.
  As ondas adormeceram com as cores e as imagens.
As portas subterrâneas têm perfumes silvestres.
Que sedosa e fluida é a água desta noite!
Dir-se-ia que as pedras entendem os meus passos.
Alguém me habita como uma árvore ou um planeta.
  Estou perto e estou longe no coração do mundo



António Ramos Rosa

quarta-feira, 13 de março de 2013

Não vem


E às vezes, o silêncio estremece
como se fosse a hora de passar alguém
que só hoje não vem.
 




Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 11 de março de 2013

Quero dizer


A poesia é um instrumento, quero dizer.
Uma chave de abrir a porta.
Uma escada de subir a nós.
  Uma altura, por fim, de descobrir que todo o chão é de cair.



Jorge Roque

sexta-feira, 8 de março de 2013

terça-feira, 5 de março de 2013

Cansaço


Não sei se quero descansar, por estar realmente cansada
ou se quero descansar para desistir



Clarice Lispector

domingo, 3 de março de 2013